Passei uma maratona de mais de dez horas trabalhando nas últimas duas semanas. Eu não sou muito organizada, mas procuro no meio da minha mesa "bagunçada" listar o que é urgente e necessário. Pontuar.
E nesse pedaço de papel, nesse rascunho, vou pontuando uma série de deveres e afazeres que parecem não ter fim! Pelo contrário a cada item riscado, surgem mais cinco para as próximas horas. Eu não sou a executiva da Unilever, sou apenas uma Profª Coordenadora Pedagógica de uma escola da rede municipal.
Será culpa do tempo? Esse lance de saber otimizar o tempo é uma tremenda besteira, porque o mundo anda culpando o tempo e não comprando livros ou vendo vídeos para aprender a lidar com o soberano tempo. Há um tempo atrás as coisas não mudavam, a pessoa escolhia uma profissão e morria sendo aquilo. O casamento só era interrompido com a ladainha próxima do caixão. O viúvo(a) era casto até morrer. Os namoros precisavam de permissão para acontecer. Os alunos ficavam quietos e sentados. Os cachorros dormiam em casinhas de madeira e eram acorrentados com a missão única de "olhar o quintal"... e por aí vai...
O tempo acelerou e está tão distante que não conseguimos alcança-lo - ficamos ao longe, sem ao menos poder dizer um adeus.
Essa semana, fui tomada por um sentimento chamado de gratidão. Apareceu um senhor na escola, para realizar um teste de escolaridade (quando a pessoa é alfabetizada, mas não chegou a concluir o 1º ciclo básico, como não tem documentos que comprovam, é feita uma avaliação e depois emitido um certificado). Uma das minhas responsabilidades é realizar o teste de escolaridade e, foi neste momento que as nossas vidas se entrelaçaram.
Neste dia, eu estava muito tensa, pois havia engolido um sapo gigante. Pensei em dizer para a secretária da escola que não faria, que talvez na próxima semana, quando o sapo já estivesse devidamente digerido. Mas ela comentou da necessidade de ser naquele dia, pois ele dependeria disso para uma possível contratação. Quem sou eu, pra impedir alguém de trabalhar! Que mande o senhor entrar. Ele entrou todo nervoso, justificando de há muito tempo não estudava, não levou lápis e borracha, só um nervosismo tão grande que o fazia gaguejar intensamente. Mas ele não estava só, sua neta o acompanhava, uma garotinha de uns 12 anos, altiva, esperta e disposta a burlar regras para auxiliar o amado avô.
Peguei a prova, lápis e borracha e munida de instrumentos levei ambos para uma sala isolada. Fiz a leitura da prova e disse que estaria na sala ao lado, caso surgissem dúvidas - foi então que o senhor perguntou: - minha neta pode ficar aqui?
A menina arregalou os olhos, como repressão a pergunta absurda do avô. Ela pensava - claro que posso ficar!
Num tom, de alguém engasgada pela vida e pelo sapo que ainda relutava em mexer na minha garganta, disse um alegre e sonoro SIM. E assim se passaram horas, até que a neta, toda relaxada me trouxe a prova, ao lado do avô.
O resultado sai na terça feira - disse gentilmente, caminhando com os dois até o portão da escola. Nos despedimos. Ao corrigir a prova, a folha de sulfite que eu havia dado para rascunho entregava a "cola". A prova realizada pela neta e copiada pelo avô - Pensem o que quiserem, mas aquilo, encheu meu olhos de lágrimas. O amor é capaz dessas coisas.
Mal havia finalizado a correção, a secretária me chama novamente, diz que o senhor estava a minha procura. Me surpreendi e fui ter com ele no portão da escola. Quando o encontro, estava com um saco de laranjas nas mãos. As laranjas haviam sido colhidas por ele, das suas rudes mãos como agradecimento. Foi inevitável o marejar dos meus olhos. Ganhar laranjas foi uma das grandes coisas que me aconteceram, depois do saco entregue e do peso ao entrar na escola, fui tomada por uma sensação de bem estar. Apesar de tanta brutalidade (pois o gigantesco sapo comprovava isso) eu havia ganho laranjas. E não são laranjas comuns, apesar de estarem azedas (segundo o meu pai, mas isso não me importa). Aquelas laranjas representam a gratidão de alguém. A pessoas brincaram dizendo que eu havia sido comprada por laranjas e, que eu estava me vendendo por um preço muito baixo. Mas não fui comprada, fui escolhida pela gratidão de um homem.